sábado, 27 de outubro de 2007

A Quase-galinha

A Quase-galinha



Tinha a memória curta.Vivia, disso sabia.Mas,… o que era mesmo que ela sabia?…Se esquecia tão rápido,talvez por isso não aprendesse...Mas de que importa a ela saber das verdades (ou mentiras) do mundo?Afinal, está aprisionada.Seu campo de visão é limitado,sua comida é seca e insossa,sua água tem gosto de cloro,sua percepção é confusa.Mas nada disso a faz sofrer.
Quem dera todos nós pudéssemos aprender a ser gratos pelo que temos, pacientes e persistentes como ela.Se você lê isso em uma tela de computador, infelizmente, está minimamente anestesiado.Dificilmente reflete sobre o valor desse privilégio, e de tantos outros.Se você não se sente grato pelo que sua liberdade lhe dá acesso, não possuí dimensão dos abismos de que foi poupado.
Mas voltemos a ela.Era anômala.Causava estranhamento, mas nem por isso era infeliz.Uma Quase-galinha.Nem grande demais, a ponto de ter o volume de uma galinha, nem pequena de menos, para ter o corpo de uma sabiá.O dono garantia se tratar de uma sabiá saudável, e por isso Geraldo a comprou.Mas quando chegou em casa: a gaiola era pequena de mais.Mas que se há de fazer?Ela continuou habitando a mesma gaiola,por dias e noites.As opções eram limitadas:comer, beber água, olhar pra um lado e pro outro,dar dois passos, quase-abrir as asas, dormir. “E no dia seguinte?” Mas que dia seguinte o quê?Não se lembra que ela não se lembra?Nunca havia dia seguinte.Era sempre o agora.Talvez por isso sofresse menos, mas só talvez...
Se fosse humana ia começar a se incomodar com as gorduras que se acumulavam, devido à sua precária atividade física.Mas era uma Quase-galinha, e nada a incomodava.Não percebia que crescia a cada dia que passava, e seus movimentos eram cada vez mais limitados.Era sempre o agora: “Oh, que lindo verde à minha frente, que lindo azul”. E 2 segundos depois: “Oh, que lindo verde à minha frente, que lindo azul”.Existia.E por ser única, tinha a sua beleza aos que a observavam.
Mas um dia...Por descuido o dono deixou a trava da portinhola da gaiola aberta.Um sopro de vento, e a liberdade sugava com seus tentáculos a Quase-galinha.Saiu.Sem ser vista ainda por cima!Voou para o galho mais próximo, e ficou fazendo o que sabia fazer: nada.O dono chegou, ficou aflito.Começou a caçada pela nossa heroína.
Inacreditável!Quase-galinha 1 X 0 Geraldo .
Ficou abatido pelo cansaço, desistiu.Como voava para um pássaro tão gordo.E ela voltou ao galho.Parada.Parada.Parada.Parada.Parada.“O que será aquela caixa de metal vazada?” Parada.Parada.Parada “Quem é aquele homem ofegante”.Parada. “Fome” Parada.Parada.Parada.Parada. “Hum!Comida na caixa vazada!” Voou de volta.Geraldo correu, conseguiu trancá-la.E ela? Nem teve tempo de se lamentar,esqueceu.Estava era feliz em saciar sua fome.
Talvez o leitor esteja triste pela Quase-galinha.Mas talvez a liberdade fosse grandiosa de mais para ela.Se servir de consolo, pense que ela já esqueceu.


Lucas O. Mourão