quinta-feira, 8 de novembro de 2007

Camila

A escuridão predominava e o céu estava sem estrelas. Estava num desses subúrbios, andando pelos becos como de usual. Era uma daquelas noites inexplicavelmente frias do verão, que nos fazer encolher dentro do sobretudo. O vento gélido soprou novamente, me deixando ansiosa. Necessidade, arg! Puxei o maço do bolso e o isqueiro laranja que comprei ao completar um ano de vício – minha miséria merece ser recompensada de alguma forma. Hum... nicotina! Minha salvação em forma de abismo.
A lua já passara de seu ponto mais alto, devia ser algo perto de uma da manhã mas, sinceramente, não importava mais. Entretanto, num súbito impulso, decidi voltar – andara por horas e não estava perto de encontrar solução para minhas frustrações. O caminho de volta foi absolutamente sem-graça, como a ida, como tudo no atual momento.
Abri a porta de casa, onde contas me esperavam – não que fosse um problema, nunca era. Era apenas desanimador, mais uma gota de um maremoto. Tirei o sobretudo, sentei-me ao piano, a única alegria da vida e fechei os olhos, tocando as divinas teclas de marfim. Sonata ao Luar, terceiro movimento. Os pensamentos fluíam livremente enquanto meus dedos percorriam seu caminho natural. Cenas da noite anterior começaram a rodar minha cabeça em flashes cinematográficos – a noite tempestuosa, os becos a Noroeste, a taverna... Forcei os olhos tentando expurgá-las, o que não funcionou. Então abri-os subitamente, suando frio – odiava a sensação. Terminei a peça de olhos abertos e acendi outro dos meus Camel. Não fumava outros, porque era como tocar um piano que não era o meu: perda de tempo. Há alguns objetos na vida que simplesmente encaixam, é como se apaixonar – uma vez encontrado o certo, não há o porque de um outro. E aquele cigarro era assim: moldava com meus lábios, descia suave minha traquéia e destruía meus alvéolos com carinho, quase. Tentador.
Levantei-me e olhei no espelho. A figura que me fitava era abatida, com olheiras profundas, cabelos negros de brilho azulado e pele branca desgastada – em que espelho ficou perdida a minha face? Bah, não, odeio Cecília! Gosto de Fagundes, Casimiro, Álvares e sim, sofro do baço.
As tonteiras de sempre tomaram conta de mim. Apoiei no piano e coloquei a mão sobre a têmpora – dois minutos e estava tudo bem. Automaticamente caminhei até a cozinha, já que desde ontem não havia comido nada. Não sabia o porquê, talvez fosse uma espécie de auto flagelação. Entrei e a faca que jazia sobre a mesa ameaçou-me – por um momento, senti-a cravada em minha garganta. Se eu conseguisse me ver, tinha certeza que repararia em meios olhos então arregalados, minha palidez e os suaves movimentos que minha mão fazia sobre minha traquéia, num misto de alivio e decepção.
Estava angustiada novamente. Sabia que meu corpo pedia uma tragada e meus dedos, o piano de volta. Atendi ambos, começando o Ostinato de Bartok. De vez em quando, tirava uma das mãos e segurava o cigarro. Acho que a escola erudita nunca me perdoaria. Ao final, deixei o improviso correr e, ao desviar minha atenção de meus próprios pensamentos, escutei o Steinway uivando angustiado. O solo ficava mais rápido – não por minha própria vontade, mas por ser um reflexo do meu inconsciente. E à medida que este foi tomando forma vi, apavorada, minha própria necessidade pulsando.
Olhei o relógio da parede: só tinha se passado meia hora. Senti-me tentada, fitando o sobretudo convidativo – estava ali, lindo, minha maça a morder. Vi-me saindo pela porta, numa súbita vitória da serpente, apalpando os bolsos para checar meus pertences. A segurança tomou conta e estampei um leve sorriso. Mesmo assim, a batalha interior continuava, mas agora era tarde: já passara do ponto sem retorno.
Saí na escuridão tão familiar e, ao mesmo tempo, tão intrigante e tenebrosa. A ansiedade trilhava minhas veias e o sorriso não desaparecera. Alguns momentos conscientes imploravam uma meia volta – sabiam que amanhã estaria infestada com culpa. Entretanto, nada disso importava mais – estava cega.
Entrei num clube do centro e escolhi a vitima, um rapaz alto e charmoso, presa fácil. Não que isso importasse, só tinha que saciar a vontade. Sentei-me no bar e acendi mais um cigarro, jogando-o olhares longos enquanto soltava a fumaça vagarosamente. Não demorou muito para entender: veio em minha direção com uma cantada barata, ofereceu um drink e flertamos por algum tempo. A conversa fraca e desinteressante me causara ânsia de vômito, mas o rapaz era bonito, então mantive o sorriso plastificado. Enfim, convidou-me para dançar e não ofereci nenhuma resistência. Seu jeito alimentava a raiva que havia se estabelecido – mesmo assim, não demorou muito para estarmos aos beijos. Senti-me melhor, chegava perto do meu objetivo. As circunstâncias levaram-nos ao carro e depois, a um motel.
Durante a viagem, não me dei ao trabalho de ouvir o que falava, só sabia que gostava de falar de si mesmo. Francamente, não a melhor estratégia. Franziu levemente a testa quando acendi um novo cigarro, que acompanhou com uma piada sem graça qualquer. Dissimulei e acariciei-lhe a coxa, dizendo que não iria se importar mais tarde. Não me surpreendi com a reação involuntária.
Chegamos no quarto e a situação esquentou: usei e abusei do garoto. O relógio bateu quatro e ele já dormia. Sentia-me melhor; olhei para seu corpo e sorri. Vesti-me apressadamente, colocando luvas de couro por causa do frio. Por fim, devolvi o pesado sobretudo a meus ombros. Enfiei a mão no bolso e uma carga de adrenalina percorreu-me. Meus dedos moldaram-se na corona e tirei a pistola do meu pai – uma bela Smith & Wesson negra com um silenciador adaptado. Respirei o poder venenoso e finalmente carreguei a arma. O clique acordou o jovem, aumentando minha satisfação. Vi que sentia vontade de gritar por socorro, não o fez porque alarmei-o das conseqüências. O controle me viciava, sabia que a vida daquele menino estava em minhas mãos – poderia poupá-lo, mas não ia. A palidez evidenciava seu pânico. Claramente via a vida pela frente destroçada pela luxúria. E se arrependia.
Mudou de tática em alguns minutos, implorando pela vida. Seu desespero só me divertia, até que perdi a paciência, dando-lhe dois tiros no peito. Segundo depois, parou de respirar.
Ajoelhei-me sobre o corpo, fechei seus olhos e toquei o sangue. O efêmero prazer tomou conta – sentia-me saciada. Mas a realidade bateu cedo demais: a gota de sangue escorreu e pingou. Olhei no espelho e vi um monstro.

Genial! Ou não... (3.5ª edição)

Minha coluna hoje está pobre, não tem fluxos de consciência nem recomendações. O principal motivo disso é o tamanho do conto que postarei hoje, o que inclusive me impediu de postar meu último poema. Não que isso realmente importe, ele aparecerá semana que vem mesmo.
E para as pessoas que acharam que 3.5 é uma referência ao D&D, sim, vocês estão cobertos de razão
Boa Prova a todos os vestibulandos da Federal e até próxima semana!
Frase da semana: "Ignorance is blissful" (W. Shakespeare)