quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Memórias Póstumas da Presa Fácil

Estava em um clube do centro. Ouvia os ruídos em volta, sentia o forte odor de bebida misturado com fedor de colônias baratas. Ria das piadas infames e me divertia na mesa de sinuca. As luzes indiretas e a fumaça dos cigarros davam um ar noir ao bar. Era uma noite como qualquer outra.
De longe, avistei uma mulher de longos olhares que assoprava a fumaça lentamente. Tinha cabelos negros de brilho azulado, pele de cor marfim colorida e olhos de colorido roxo. Tentadora. Encarava-me como um predador que olhava para sua presa. Tentadora. Como uma mosca que se aproxima da luz, dirigi-me até ela inconscientemente. Simplesmente me atraía. Quando me dei conta, já estava soltando qualquer cantada e risadas fáceis. Mas não conseguia escutar uma palavra que dissesse. Apenas me concentrava nos lábios que tão carinhosamente buscavam o cigarro e no som abafado da música. Ofereci um drink que, nem um pouco surpreendentemente, aceitou. Podia ver o brilho em seu olhar, o sorriso decorando seu rosto, a procura pela satisfação. Sabia que já era jogo ganho. Essa seria uma noite como qualquer outra.
Convidei-a para dançar e não tardou para estarmos aos beijos. Quando beijava, beijava com força e com raiva. Como se fosse me comer. Podia sentia o calor de nossos corpos abraçados. Beijava-me como se fosse me engolir. Sua boca tinha gosto de tabaco, mas suas mãos eram finas e delicadas. Os dedos longos traçavam seu caminho na superfície do meu rosto e no emaranhado de meus cabelos. Sabia que era jogo ganho e levei-a para o motel.
No caminho, resolvi tomar o controle. Cada centímetro de pele exposta me dava uma sensação de fervor. Não podia parar de notar no seu decote, que tão facilmente chegava ao alcance de meus olhos. Enquanto dirigia, entoava palavras e histórias que a divertia. Nunca tive dificuldades com mulheres. Dê-lhes o luxo da beleza, faça-as achar que possuem a vantagem do controle, inebrie-as com a desinibição do álcool e domine-as com o prazer do sexo. Incomodava-me, somente, as infindáveis tragadas. Não pelo cigarro em si – não, não possuía nenhum efeito em mim-, mas pelo molde que dava aos seus lábios. Disse que não me importaria mais tarde enquanto subia sua mão vagarosamente pela minha coxa. O efeito foi imediato: podia sentir o fervor nas partes mais íntimas e o desejo na flor da pele.
Quando chegamos, impressionou-me a ferocidade com a qual me despia. Seu corpo não passava de um vulto na escuridão. Tocava-a, mas não a sentia. Sua superfície estava molhada de suor frio. Seus gestos eram ensaiados e frios. Mas seu corpo expelia um calor tão intenso. Depois, os beijos viraram mordidas e os toques, arranhões. Se antes se movimentava brutalmente, como um animal que se soltara de sua jaula, depois passava a mover-se lentamente na velocidade de suas tragadas. Se em determinado momento parecia calculista e caprichosa, no outro, soltava faíscas pelos olhos raivosos. Virara uma dança, onde mudávamos de posição como quem muda de ritmo. Ela conduzia e eu fazia meu melhor para acompanhá-la. Transformou-me em um virgem, usou-me como bem lhe entendeu para somente gozar do meu prazer. Arrancou em cada suspiro e em cada gemido todas as minhas energias. Extasiado, fui dormir.
Acordei com um clique. De pé, já vestida com seu longo sobretudo e luvas pretas, dava as costas para mim. Podia sentir sua respiração pesada. Levantou a cabeça enquanto preparava a arma. Puxou seus cabelos para trás e olhou-me pelo canto do olho. Seu sorriso era inexplicável. Sua expressão era orgástica e seu olhar passou a ser gélido. Era uma besta feroz. Uma besta de calibre e silenciador. O cano negro de sua arma arrancou toda a cor do meu rosto. Já não conseguia mais pensar. Fui tomado por um desespero e por uma sensação de impotência desumana. Era a carniça e só agora tinha tomado consciência disso. Fui vítima de uma deusa com fetiches macabros. Femme Fatale. Implorava pela minha vida enquanto me acuava como um cachorro assustado.
De repente, o estouro abafado. Não houve túnel. Não houve luz. Nem céu nem inferno. Havia somente nós três: eu, o monstro e a minha insignificância.

Clarissa Maria, do blog Testículos Literários